quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Como foi feita a tradução do Missal no Brasil

Dom Clemente Isnard

Após ter sido instigado por um leitor, empreendi uma nova pesquisa internética em busca de um texto de Dom Clemente Isnard, no qual o bispo confessa ter ludibriado a Congregação para o Culto Divino e ainda ter desconsiderado a Assembleia Geral da CNBB, os seja, os Bispos!

Alguns vão censurar minha ousadia em criticar um ícone da reforma litúrgica no Brasil. O próprio Dom Clemente, com quem tive oportunidade de conversar algumas vezes e que respeito pelas suas muitas virtudes, me compreenderia. Ele, com a sinceridade que o caracteriza, não poupa críticas, mesmo aos papas, como veremos no texto abaixo.

Publiquei o texto integral, apesar de extenso, e mantive a transcrição original por respeito à fonte, ainda que contenha alguns erros de digitação.

Eis o texto:

No dia 04 de dezembro de 1963, foi aprovada a Constituição Conciliar “Sacrosanctum Concilium“, o primeiro fruto do Concilio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), e o resultado das lutas ingentes dos amigos da Liturgia contra o grupo conservador (inimigos da liturgia, segundo o bispo). Esse esteve reduzido a 04 (quatro) votos.

Apesar das dificuldades causadas pela Congregação dos Ritos, em 25 de janeiro de 1964, Paulo VI publica o primeiro documento para aplicação da Constituição Conciliar, o motu próprio “Sacram Liturgiam” .

Os bispos brasileiros, que estavam em Roma para o Concilio, já haviam retornado ao Brasil.

Só em 1964, depois de voltar a Roma para a continuação do Concilio, a CNBB se reuniu e aprovou os Estatutos e procedeu a eleição para preencher os cargos.

Os novos Estatutos previam um Secretariado Nacional de Liturgia encarregado da matéria e uma Comissão Episcopal.

Fui eleito, então, Secretário Nacional da Liturgia, e encarregado de compor a Comissão Nacional. Escolhi bispos interessados, moços e simples auxiliares.

Foram Dom Lamartine, Dom Mielli e Dom Castro Pinto. Encontrava-se também em Roma Dom Waldyr Calheiros que me ajudou com conselhos, especialmente para a escolha do secretário, Cônego Amaro Cavalcanti. Este, além de trabalhar no setor no Rio de Janeiro, tinha iniciado um belo trabalho de música, que durou até a sua morte, ocorrida no ano passado.

Fiz o pedido ao cardeal Jaime Barros Câmara, que se encontrava em Roma, e a primeira resposta foi negativa. Mas depois, o Cardeal modificou sua posição porque conhecia a competência e o bom espirito do Cônego Amaro e nele confiava. Disse consigo mesmo: “Se eu nego, Dom Clemente vai convidar alguém exagerado (por que o Cardeal pensaria isto de Dom Clemente?). É melhor permitir que o Cônego Amaro assuma”. Movido por essa razão (conforme relato de Dom Waldyr, então bispo Auxiliar do Rio de Janeiro) me procurou alguns dias depois para liberar o Cônego Amaro.

Os quatro bispos, hoje, sou o único sobrevivente, se davam muito bem e podiam trabalhar juntos. Castro Pinto era diferente, mas muito capaz, inclusive para as traduções. A trinca era Lamartine, auxiliar de Recife, Mielli, auxiliar de Campinas e eu.

O primeiro trabalho que se nos apresentava era o das traduções, para introdução do vernáculo na Liturgia. E ai surgia a questão: será uma tradução brasileira ou portuguesa? Parecia-nos então que o começo seria um entendimento com os Bispos de Portugal. Fomos os quatro ao Seminário Português em Roma, onde estavam hospedados os portugueses, e depois de uma tarde de entendimento, concluímos que seria preciso adotar uma tradução comum da Bíblia. Chegamos até a combinar algumas coisas práticas. Mas daí não ouve seguimento. Surgiram logo dificuldades, e entre elas a maior: que tratamento dar a Deus, “tu” ou “vós”. Os portugueses queriam “ Vós “ e os brasileiros da comissão queriam “Tu “, mas os Bispos brasileiros estavam divididos. Mais tarde, numa assembléia geral celebrada, em São Paulo (no Ipiranga), foi feita a votação por escrito, e o resultado foi surpreendente: empate rigoroso. Enquanto isso os padres que trabalhavam nas traduções, sob a orientação de Dom Timóteo Amoroso Anastácio, optavam pelo “tu “e ciclostilavam os primeiros textos em “tu “. Era angustiante, e não se via solução: Portugal era “vós" e Brasil empatado entre “vós” e “tu”.

A discussão “vós” e “tu” voltou mais de uma vez à Assembléia Geral. Dom Lamartine citava em apoio do “tu” uns versinhos do século 16 ou 17: “se a Deus se chama de “tu” e a El-Rey de “vós”, como chamar o Juiz de Igarassi: ‘tu” e “vós” , “vós” e tu”. O mais difícil é que Roma queria um acordo entre Brasil e Portugal, e sem o acordo se recusava a aprovar qualquer revisão. O assunto chegou ao Papa, e o grande Paulo VI decidiu que não se devia ter todas as versões iguais, em Portugal e no Brasil, mas que seria suficiente ter o texto do povo igual, de modo que o povo pudesse rezar em Portugal e no Brasil da mesma forma. Assim, a Oração Eucarística poderia ter uma tradução em Portugal e outra no Brasil, mas as resposta do povo deveria ser idênticas. E assim foi feito. Mas era preciso resolver o problema do “tu” e “vós”.

Do jeito que estavam as coisas não se via possibilidade de solução. Os portugueses no fundo achavam que eles deveriam resolver por serem os donos da língua e por assim fazerem com os países da África, que, na época, eram chamados a opinar. Impunha-se um acordo, ou, caso contrario, não haveria nunca nenhuma tradução aprovada em Roma. O acordo se fez numa reunião em Portugal. Representando o Brasil fomos eu e o Padre José Antônio de Moraes Busch, do clero de Campinas, então assessor na CNBB, e, representando Portugal três Bispos e três peritos. Nós nos reunimos, oito pessoas, na casa de Retiro da Buraca, perto de Lisboa. Na abertura dos trabalho estabeleci que os votos seriam por país, quer dizer, os seis votos portugueses teriam o mesmo valor que os dois brasileiros. Do contrario, nós estaríamos perdidos. Eles concordaram. E mediante discussões infinitas estabelecemos o texto do povo, tanto no Ordinário da Missa como em outras partes da Liturgia. Foi ai que se fixou “Ele está no meio de nós” como resposta ao “Senhor esteja convosco”, e outras versões pouco literais (nada! literais). Os portugueses até que foram liberais em atender nossas preferências. Saliento no principio da Missa “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo”; apenas duas “por minha culpa, minha tão grande culpa” no “Confesso” ; “paz na terra aos homens por Ele amados” no Glória; “desceu a mansão dos mortos” no Credo; “é nosso dever e nossa salvação” no diálogo do Prefácio; “o amor de Cristo nos uniu” como resposta ao “Pax Dominum sit semper vobiscum”. A presença de Padre Busch foi muito importante para convencer os portugueses.

No fim do encontro tínhamos uma fórmula aceitável, que os Bispos da Conferência Portuguesa adotaram sem modificação e que eu e os assessores de liturgia adotamos sem consultar a Assembléia da CNBB (nada de colegialidade, foi um ato monárquico de Dom Clemente e de sua cúria de assessores; a única monarquia e cúria odiosas são a monarquia papal e a cúria romana, como fica claro no presente texto), sob os protestos de Dom Geraldo Fernandes. Ele me disse certa vez: “Dom Clemente, como teve coragem de modificar sozinho o Credo (profissão de fé )?” Fiz e não me arrependo, pois não havia outro jeito. Lembrem-se do empate entre “tu” e “vós” (pois do contrário os bispos poderiam ousar modificar ou atrasar as decisões de Dom Clemente, uma insubordinação inaceitável!).

O acordo com Portugal consagrou o “vós” e agradou os Bispos conservadores. A alma do Encontro da Buraca foi o Padre Busch, um dos mais eficientes assessores que tivemos.

Voltando de Roma, onde tínhamos estado com o Cônego Cavalcanti, organizamos o Secretariado da Liturgia no Rio de Janeiro, no novo edifício sede da CNBB, no Largo da Glória. Até hoje me lembro com saudades daquele velho prédio onde fizemos tanta coisa pela Liturgia. Aí veio trabalhar conosco uma pessoa preciosa, Maria Luiza Amarante, que foi nossa secretária enquanto a CNBB esteve no Rio de Janeiro. A ida da CNBB para Brasília nos fez perder não só Maria Luiza como o Cônego Amaro e Padre Busch. Apenas dois assessores seguiram conosco: Padre Odilon Jaeger e Maucyr Gibin. No Rio havia reunião da Comissão Episcopal de Pastoral (CEP), precedida de um ou dois dias de reunião particular da Liturgia. Foi dessa forma que nós asseguramos a colaboração de um grupo notável de liturgistas e que preparamos nossa atividade. A Liturgia era o único setor que promovia esse tipo de reunião, e isso desagradou a alguns. O próprio Dom Ivo Lorscheiter, quando Secretário Geral, me procurou para acabar com essa reunião. Tivemos então uma longa entrevista e ele tentou me convencer, mas não conseguiu. No final da reunião ele me disse: “Dom Clemente, o senhor é muito teimoso”. Eu respondi : “é uma das minhas poucas qualidades”. Ele então acabou com o almoço que nos era dado na CNBB, mas nós arranjamos almoço no apartamento de minha mãe e outros lugares amigos. Quanto ao pro labore, que os colaboradores que não eram assessores da CNBB recebiam, eu passei a arranjar com amigos. Uma amiga protetora foi Dona Laurita Pessoa Rajá Gabaglia. Foi único aborrecimento que tive com Dom Ivo. Não sei porque ele não aceitava o modo próprio de funcionamento do setor de Liturgia; seu argumento é que aquela atividade não era necessária porque as outras linhas não tinham. Evidentemente a mudança da CNBB para Brasília acabou com esse tipo de reunião. Além das reuniões mensais com grupo pequeno, nos primeiros anos fizemos reuniões grandes uma vez por ano, que chamávamos Semana Nacional de Liturgia.

Para essas semanas eram convocados representantes de todos as Regionais da CNBB e havia uma programação cuidadosa com peritos encarregados dos diversos temas. Paralelamente à reunião de Liturgia, se realizava uma reunião de músicos, coordenada pelo Cônego Amaro Cavalcanti. Nessas reuniões sobressaia frei Joel Postma. Destacaram-se as Semanas Nacionais de Liturgia de Valinhos (perto de Campinas) e de Belo Horizonte. Não me lembro exatamente de quantas foram. O trabalho de reflexão, indispensável para uma reforma, se fazia nas reuniões mensais especialmente nas Semanas de Liturgia, onde se estabelecia o contato e o convívio com liturgistas de outros lugares. Assim conhecemos Pe. Reginaldo Veloso, de Recife, e outros, como o Pe. Jocy Rodrigues, do Maranhão, que é o compositor da Oração Eucarística número V (enfim conheci o nome do Gregório Magno do Maranhão!) e de belíssimos outros cantos litúrgicos. Desta maneira a reforma era obra não de um pequeno grupo do Sul e do Centro, mas abrangia a colaboração de gente de todo o Brasil, com apoio em Pernambuco e no Maranhão, sem falar no Centro Oeste. Iniciamos, ao voltar de Portugal, a redação do Ordinário da Missa com “vós”. É pena que não tenha havido um episcopado tão numeroso e tão diversificado em matéria de opiniões aquilo que alcançamos em Lisboa. Resolvi então proceder por própria conta – coisa de admirar mas não de imitar – (admirar só em Dom Clemente, imitar impossível, já que esse poder é privilégio seu, nem o Papa pode agir por conta própria!) e que tanto irritou Dom Geraldo Fernandes, que chegou a ser Vice-Presidente da CNBB. Apresentei em Roma, e a Congregação para o Culto Divino aprovou nossa versão. Nossa sorte é que no momento não havia na Congregação perito em língua portuguesa. Desta forma obtivemos apuração da simplificação do Cânon Romano, que tinha sido apresentada pelos franceses e negada... Nós simplesmente havíamos copiado a proposta francesa (Essa confissão é terrível: copiou a proposta que sabia ter sido recusada por Roma e usou de um expediente para aprová-la! A chamada simplificação do Cânon Romano é uma das coisas mais ignóbeis de todo o processo. O Cânon Romano, patrimônio multissecular, que mesmo os Papas não ousaram tocar, permaneceu inalterado no curso dos séculos, tendo-lhe sido acrecentado apenas o nome de São José em 1962, pelo Beato João XXIII). A aprovação do Ordinário da Missa era um grande passo dado. Mas não era o mais longo. Era preciso traduzir o Missal. Já havia circulado traduções parciais. Aproveitando na medida do possível o trabalho feito, uma comissão de liturgia, presidida pelo Pe. Busch, assumiu o trabalho de preparar a tradução completa do Missal Romano. Padre Busch obteve para isso a cooperação do venerável Arcebispo de Campinas, Dom Alves de Siqueira, que durante muitos meses vinha passar uma semana no Rio de Janeiro, hospedando-se na própria CNBB e trabalhando intensivamente na companhia do Padre Busch. Foi uma grande alegria quando pudemos enviar à Congregação do Culto Divino o pacotão do missal traduzido. Hoje, usando o Missal, achamos alguns textos merecedores de melhoramento. Mas na época, Dom Siqueira, com enorme paciência, traduziu sobretudo o texto das orações, e quase sempre chegou a resultado satisfatório. Quem trabalha para liturgia faz uma obra anônima: não consta no Missal o nome dos tradutores, como não consta o nome dos redatores das Orações Eucarísticas e de outras peças importantes. É um trabalho de amor e desinteressado. Quem iria reconhecer os méritos de Bugnini (não é o que pensa o Papa Bento XVI) e de Martimort e de outros grandes liturgistas, também brasileiros? Só Deus. A impressão do Missal foi uma grande vitória.

Entrementes conseguimos preparar a tradução de outros livros litúrgicos e mandar a Roma para aprovação. Não vou apresentar um catálogo das edições litúrgicas.

Paulinas e Vozes foram as primeiras editoras, mas depois vieram outras. Os assessores estavam divididos na preferência por essa ou outra editora. Certa vez, vendo que isso prejudicava a causa comum, disse eu aos editores reunidos, no Largo da Glória, algumas verdades talvez duras de ouvir. Com efeito, havia perigo de surgir uma certa corrupção atingindo o pessoal do secretariado para favorecer indevidamente esta ou aquela editora. Coisas inevitáveis mesmo entre ótimas pessoas. O alvo a atingir era a tradução de todos os textos litúrgicos: Missal, Sacramentários e outros Rituais.

À medida que os textos iam sendo aprovados em Roma, nós iniciávamos a tradução aqui. O processo de aprovação de textos em Roma foi lento; alguns eram elaborados mais rapidamente, outros encalhavam em dificuldades, como o do sacramento da Penitência e o dos Ministérios, antigas Ordens Menores. A Liturgia das Horas era uma outra maratona, talvez mais complicada do que o Missal. Foi o ultimo livro que vi com a edição definitiva. Lembro-me de que quando Dom Celso Queiroz me apresentou o primeiro volume, não contive as lagrimas. O trabalho final foi feito em Brasília e para isso contamos com a dedicação em tempo integral de duas pessoas. Era preciso ter uma boa tradução dos salmos, como que a matéria prima do livro.

Disso se encarregou o Padre José Weber, que eu havia pescado em Roma por indicação de Cônego Amaro.

Precisaríamos de uma tradução exata, recitável e bonita. Creio que nosso texto do saltério em português é magnifico. Graças ao acordo da Buraca com os portugueses, os textos da Liturgia das Horas não precisavam ser comuns aos dois países, o que facilitou muito. Padre Weber pode trabalhar à vontade e poucas foram as modificações feitas a seu texto. E como foi difícil a montagem do livro! Mas não se tratava só dos Salmos: era preciso traduzir os hinos, as antífonas, as leituras. O Brasil pode se gloriar de ter a melhor versão dos livros da Liturgia das Horas, melhor que a França, a Espanha e a Itália. As leituras bíblicas dependiam de uma versão da Bíblia que a CNBB orientou, mas que depois escapou de nosso julgamento. A chamada Bíblia da CNBB foi feita por uma comissão especial dirigida pelo Padre Konnings, jesuíta, que é o responsável principal. Os textos que figuram na Liturgia das Horas foram os primeiros, mais tarde corrigidos na edição definitiva. Nós tínhamos de inicio alguns bons tradutores, como um padre, mas lento no trabalho. Para fazer uma obra que se aproximasse da perfeição deveríamos esperar o ano 2000. E isso eu não queria (o que conta é sua vontade!), pois quanto mais tarde saísse a Liturgia das Horas, menos seria usada. Mais uma vez, para ter as traduções, facilitamos a qualidade. Creio que não errei e hoje faria o mesmo.

O trabalho dos tradutores seria corrigido por uma comissão de Bispos. Houve uma, que deveria rever a tradução do Evangelho de S. João, e que envergonhou a CNBB. Mandou para Roma um texto tão ruim que obrigou a Congregação a rever ela mesma. Ainda bem que fizeram em Roma esse trabalho que não lhes cabia (Como não? Cabe ao Papa e, sob sua autoridade à sua Cúria, aquilo que lhe aprouver). Não me lembro dos nomes dos culpados, apenas que se tratava de bispos mineiros. A colaboração dos Bispos, também residenciais, no trabalho da Liturgia foi intensa, sobretudo no principio, quando nos parecia que tudo devia ser feito por bispos. Como Dom Lamartine e Dom Mielli e o próprio Dom Castro Pinto se esforçaram nos primeiros tempos! Já lembramos Dom Antônio Alves de Siqueira, mas muitos outros também colaboram.

Cada vez que se editava em português do Brasil um livro Litúrgico, sentíamos alegria e alivio. Era o caminho andado para o cumprimento da missão. Mas não era tudo o que devíamos fazer. Era preciso comentar os livros, animar a vida litúrgica e descobrir o que deveríamos fazer para enriquecer a própria liturgia. Não éramos apenas tradutores, mas tínhamos de ser criativos!, e isso nos preocupava desde o inicio (e nos atordoa até hoje).

Numa de nossas reuniões mensais no Rio, foi feita sugestão de compor uma Oração Eucarística para o Congresso Eucarístico Nacional de Manaus. Naqueles dias nós contávamos em Roma com o apoio clarividente de Bugnini. Eu ia duas vezes por ano a Roma para reuniões do Conselho e depois da Congregação para o Culto Divino e podia advogar a causa. Encontrei boa receptividade em Bugnini, e mãos a obra. Marcamos reunião preparatória no Cenáculo, com a assessoria dilatada. E preparamos dois textos: um meu, e outro do padre maranhense.

Eu li o meu texto e enquanto ouvia o do padre maranhense tinha vontade de imitar o que fizera o concorrente de Santo Tomás de Aquino para textos da festa de Corpus Christi: ir rasgando silenciosamente. Mas não fiz... Evidentemente, o grupo reunido escolheu o do padre maranhense, que é o texto da Oração Eucarística numero V.

Esse foi levado a Comissão Episcopal de Pastoral (CEP), onde recebeu uma ou duas pequenas modificações, e depois enviado a Roma. Em Roma, sem levar em consideração o ritmo do nosso texto, também fizeram duas pequenas modificações. Parece que, além do Culto Divino, o projeto enfrentou a Doutrina da Fé, mas venceu as etapas. E a Oração numero V, bastante breve, é usada, apesar de não agradar a alguns.

A aprovação de uma Oração Eucarística brasileira era um sinal dos tempos. Bugnini se achava no auge de seu prestigio e podia se permitir gestos de benevolência para com uma Conferencia Episcopal numerosa mas sem prestigio.

Infelizmente, os ventos não tardaram a mudar em Roma. Bugnini cada vez mais ousado (fico a imaginar o que de tão grave fez Bugnini para ser considerado ousado por Dom Clemente) e contando com a confiança de Paulo VI, aprovou a Oração Eucarística para Missa com crianças e outras coisas mais. A oposição romana, tendo como porta voz o Cardeal Felici, conseguiu derrubá-lo de modo insidioso (crítica de Dom Clemente a um cardeal,com toda sua sinceridade); foi supressa a Congregação para o Culto Divino e unida a Congregação para a Disciplina dos Sacramentos. Bugnini estava fora de Roma, em férias. Para ele não ter a notícia pela imprensa, o Cardeal Tabera foi onde se encontrava para avisar. Ora, cada Congregação tinha um Prefeito e um Secretário; unindo duas Congregações sobraria um Prefeito e um Secretario. Ora, o secretário dos Sacramentos era mais antigo como Bispo (era um antigo Núncio, que nada entendia de Liturgia), e teve prudência para continuar no cargo da nossa Congregação. Bugnini não era mais nada. Eu escrevi uma carta ao Papa e o Cardeal Secretário de Estado, Cardeal Villot, respondeu perguntando se o Papa não tinha direito de escolher seus auxiliares (pela resposta, concluo que Dom Clemente questionou a exoneração de Bugnini pelo Papa, talvez por não ter sido consultado ou por não lhe ter sido pedida a devida autorização). Eu não podia negar isso, mas diria que deve escolher bem, e não como fez dessa vez. Esse fato lançou uma sombra sobre o pontificado de Paulo VI, que estava envelhecido e fazendo algo em contradição com toda sua linha de conduta anterior (critica aqui o próprio Papa Paulo VI, como anda hoje fazendo as suas ao Papa Bento XVI).

A saída de Bugnini foi desastrosa, não só para a Congregação em Roma, mas para o mundo inteiro.

Uma das últimas vezes que conversei com Bugnini em Roma, uma das melhores conversas que tivemos, ele falou de seus planos. Disse que estava faltando um Diretório para Missas “cum rudibus” e que pretendia fazer isso. Mas não teve tempo; os inimigos (os inimigos! para Dom Clemente são os cardeais e bispos da cúria romana) já estavam se movimentando e o golpe preparado. Voltando para o Brasil, na primeira reunião mensal dos assessores, falei do assunto e encontrei boa acolhida. Com efeito, o Brasil precisava de um Diretório para gente simples. Foi nome que dei. E nos pusemos mão à obra. Como não tratava de uma tradução de um documento romano, usei de grande cautela, evitando cuidadosamente coisas que pudessem criar dificuldades em Roma. O Diretório para Missas com gente simples foi preparado e levado à Assembléia Geral, onde foi aprovado, sem grande oposição, e batizado por Dom Waldyr como “Diretório para Missas com Grupos Populares”. O nome me pareceu bom, mas não foi feliz, porque era a época em que o colombiano Lopes Trujillo fazia uma campanha contra a “Igreja Popular” em toda a América Latina. Eu achei que nosso Diretório não continha nada de avançado, e que por isso não precisava ser submetido a Roma (era sempre ele quem decidia tudo).

Mas Roma recebe as atas da Assembléia Geral e fica sabendo de tudo o que se passou. Um belo dia na CNBB, que ainda estava no Rio, me disseram que a Congregação tinha pedido nosso Diretório para examinar. Fiquei surpreso, disse que não havia necessidade, mas acabei tendo de mandar. Não tardou muito a chegar uma proibição de usar o Diretório, que já estava impresso e distribuído.

Foi a grande humilhação que tive no relacionamento com Roma. Humilhação injusta, pois o Diretório não tinha nada que merecesse essa condenação. Mas não ficou nisso; como eu também atuava no CELAM, e o perito do CELAM, Álvaro Botero, um colombiano inteligente e bem orientado, havia apreciado nosso Diretório e feito traduziu em castelhano, a Secretaria de Estado mandou uma circular aos Núncios do mundo inteiro (até da Austrália!) comunicando a condenação. Assim o nosso modesto Diretório se transformou num perigo para a Igreja!

Ainda tenho em meu poder um exemplar da 4ª edição do Diretório. Depois de redigir esta breve noticia, me dei ao trabalho de reler todo o Diretório. Desafio qualquer perito em Liturgia para mostrar algo que motivasse sua condenação. Tudo o que é aconselhado no Diretório está hoje posto em pratica nas comunidades (o que talvez signifique que aquilo que está em prática precisa ser corrigido). Se não me engano, a razão decisiva para a condenação romana está na expressão “Grupos populares” (agora Dom Clemente despreza nossa inteligência; fosse apenas isso teria sido sugerida uma outra expressão, e não uma condenação em bloco). Na época Dom Afonso Lopes Trujillo movia no ambiente latinoamericano uma guerra ao que chamava “Iglesia Popular”, e que ele considerava uma perversão da Igreja Católica (e era!). Acontece que ao pensar nos “Grupos populares”, nós brasileiros nem de longe tínhamos em vista a fenômeno cismático (como, então, não era uma perversão?) que estava ocorrendo em alguns países latinoamericanos.

Apesar desta atitude, depois da saída de Bugnini, houve durante anos a fio uma boa colaboração da Congregação para o Culto Divino com a CNBB. Primeiro a compreensão dos problemas de língua entre Brasil e Portugal.

Neste caso Bugnini me disse que o Papa Paulo VI havia recomendado não exigir demais porque conhecia as diferenças de linguagem; e a solução foi boa: unidade para as partes do povo e liberdade para o resto. Segundo, a Oração Eucarística brasileira, a V , que foi uma bela concessão ao Brasil, que nenhum outro pais da América Latina tem. Terceiro, as aclamações na Oração Eucarística, que nem todos os países da Europa têm. Quarto, a aprovação da versão do Cânon Romano com as simplificações (mutilações). Quinto, o tratamento cordial dado ao Brasil durante as negociações.

Dom Clemente Isnard, osb

Conferência - testemunho

Encontro dos Liturgistas do Brasil

Belo Horizonte, 28 de janeiro de 2002

Fonte: Oblatus

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